CAPÍTULO 04

a mediunidade como prática social popular e seus diferentes significados

Abordar a mediunidade, um assunto tão polêmico e complexo, de forma compreensiva e amorosa, ouvindo, sobretudo, os que vivenciam o fenômeno e buscando compreender sem pré-conceitos suas experiências cotidianas e sem a necessidade de fazer proselitismo religioso é a nossa intenção ao escolher o Grupo de Pesquisa Práticas Sociais e Processos Educativos, na UFSCar.
O "campo popular", como afirmam Maria Waldenez de OLIVEIRA e Fabiana Rodrigues de SOUSA (2014, p. 8), é o campo privilegiado das pesquisas realizadas na referida Linha de Pesquisa, do programa de pós-graduação em Educação, da UFSCar, cujo objetivo, de forma resumida, é a investigação de como as pessoas se educam, compreendendo a educação como formação humana que se dá nas mais diversas práticas sociais. Entre os autores que fundamentam o trabalho do Grupo de Pesquisa, encontramos Paulo FREIRE, Ernani Maria FIORI e Enrique DUSSEL que, de certa forma, compartilham a ideia sugerida por BRANDÃO de que

a ciência e a educação que desejamos praticar e através das quais aspiramos descobrir e ampliar ad infinitum sujeitos e campos sociais de diálogo criador e emancipatório devem partir desde o lugar social da comunidade humana concreta e cotidiana. E devem desaguar no território de vidas e histórias humanas reais. De um modo ou de outro, sempre um outro é o sujeito de minha pesquisa e o companheiro de meu saber. (2014, p. 13)

E o primeiro elemento que nos levou a buscar esse grupo de pesquisa foi o fato de ser impossível excluir o Espírito da cultura popular ou desconsiderá-lo nos processos educativos populares. E não estamos aqui nos referindo ao "espírito", tomado frequentemente como um simples “nome”, sem entidade ou substância. Não estamos nos referindo ao sentido usual de "espírito do tempo” análoga a uma abstrata “consciência popular”. Por Espírito estamos nos referindo aos seres incorpóreos, invisíveis, cuja presença na história e na cultura de todos os povos, em qualquer parte do Globo, e sobretudo na cultura popular brasileira, estão sempre presentes.
O Espírito está na base dos principais sistemas religiosos mundiais e foi admitido como real por Platão, Zoroastro, Pitágoras, São Francisco de Assis, entre outros. E, apesar de invisíveis, há evidências que se manifestam e dialogam com os seres humanos desde longa data. Na Antiguidade, por exemplo, os gregos, os egípcios e os hindus faziam contato com tais seres através dos mistérios e dos oráculos. As comunidades judaicas foram proibidas por Moisés de continuar esse intercâmbio, conforme relatos bíblicos. Porém, tais proibições não foram suficientes para que durante a Idade Média esse contato com o lado oculto da vida permanecesse. Os adivinhos e feiticeiros, como as Walkirias dos Escandinavos, deram prosseguimento a essa prática. No oriente, o intercâmbio com os Espíritos é realizado e aceito por várias linhas taoistas. E nem sempre tais seres incorpóreos tem formas humanas, podendo se manifestar como "gnomos", "fadas", "duendes" etc., classificados por algumas linhas esotéricas como "seres elementais da natureza".
E, na realidade brasileira, seja através de práticas populares e religiosas de origem indígena, africana, europeia e, mais recentemente, asiática, o Espírito sempre esteve presente. E ele é o centro das atenções nas práticas sociais medianímicas, sejam elas de base espiritista, umbandista, de apometria, esotérica (fraternidade branca, por exemplo) ou até mesmo laica, como é o caso da ONGCSF.
Porém, em um mundo racionalista e iconoclastico, como é o Ocidente moderno, podemos nos perguntar: o Espírito é uma criação da imaginação humana ou imaginar é um atributo do Espírito?
Segundo Gilbert DURAND (1997 e 1998), o imaginário está relacionado diretamente à consciência da finitude da vida, ou seja, ele seria uma resposta antropológica à morte, podendo se manifestar como forma de enfrentamento (imaginário diurno) ou como eufemização da morte (imaginário noturno).
Dentro dessa perspectiva, a crença na vida após a morte ou de existência do Espírito não seria mais do que o fruto de um imaginário “noturno” ou uma forma de eufemização da morte. E, corroborando com a ciência materialista, essa capacidade de imaginar não passaria de mais um epifenômeno do cérebro, nascido das articulações recursivas entre o domínio "bio-psíquico" e o "sociocultural". Essa é a ideia defendida, por exemplo, também por Edgar MORIN (1998), no livro O método 4 - as ideias em que defende a existência da "noosfera", onde, em tese, afirma residir os espíritos, os orixás, os mitos etc., mas que se dissolve junto com a morte física. Ou seja, MORIN (op. Cit.) acredita que o médium, de fato, pode incorporar um "exu", um ser habitante da "noosfera", e esse conversar com os consulentes em uma gira de umbanda. Porém, com a morte do médium, o "exu" deixaria de existir.
Diferentemente é a postura adotada pelos adeptos das religiões como a Umbanda, o Espiritismo e outras que acreditam na existência de um "plano espiritual" e na continuidade da vida após a morte. E se partirmos de uma perspectiva fenomenológica, pautada na experiência vivida, ou se seguirmos os passos metodológicos sugeridos pelo Grupo de Pesquisa Práticas Sociais e Processos Educativos[1], não temos como ignorar a perspectiva dos grupos humanos que afirmam manter contato com os Espíritos e aceitar uma outra hipótese: que o ato de imaginar pode ser, ao contrário, um atributo do Espírito.
Ao se abrir a essa outra hipótese, uma outra relação com a morte se apresenta no horizonte. Para além do imaginário que nos leva a enfrentar ou eufemizar a morte, estaríamos, ao contrário, diante de uma importante tomada de consciência e talvez da maior forma de libertação e emancipação que a vida humanizada pode nos propiciar: a aceitação ativa da imortalidade da alma ou de sua infinitude. Essa tomada de consciência costuma promover, em muitas pessoas, e de forma profunda e irreversível, uma mudança de atitude e de sentimento diante da vida, ocasionando uma verdadeira metanoia. Esse processo educativo profundo é chamado de Animagogia, nos estudos promovidos pela ONG Círculo de São Francisco.
Assim, mais do que uma forma de eufemizar a morte, a famosa frase do jesuíta e paleontólogo francês Teilhard de CHARDIN é uma tomada de consciência libertadora e emancipadora para quem vivencia um processo metanoico, um profundo processo educativo de autoconhecimento: “não somos seres humanos vivendo experiências espirituais, mas seres espirituais vivendo uma experiência humana”.
Porém, tal conscientização não representa cair em uma perspectiva solipsista e idealista, afirmando que o mundo material não exista, que se trata de uma mera projeção mental de uma suposta consciência pura. Como nos apresenta, com propriedade, o filósofo LÉVINAS (1988), que gostava de ser chamado de filósofo e judeu e não de "filósofo judeu" (como frequentemente era tratado, até de forma pejorativa), em seu clássico Totalidade e Infinito, ao contrário do que pensava HUSSERL, a impossibilidade do tempo vivido (individual) não reproduzir o tempo histórico (totalidade) era o que nos permitia nos abrir para a transcendência (que para ele não se alcançava negando o mundo, mas, justamente, quando a este nos abrimos e respeitamos o Outro com suas perspectivas diferentes) era também o que nos permitia pensar na possibilidade da vida existir após a morte e, inclusive, dela existir antes do nascimento. É importante não nos esquecer que, para várias tendências do judaísmo, o termo "ressurreição" tem a conotação do termo moderno "reencarnação", ou seja, a possibilidade da alma voltar a vida material em um novo corpo.
Enquanto prática social a mediunidade é um fenômeno humano que manifesta uma existência que podemos classificar como perceptiva (MERLEAU-PONTY, 1999) e outra que podemos classificar como cognitiva. A primeira forma de existir revela a percepção, a representação e a apreensão do fenômeno de acordo com o ponto de vista das pessoas que vivenciam em seu cotidiano a mediunidade como uma experiência espiritual e também como uma prática social realizada em centros espíritas, terreiros de umbanda e outros locais. A existência perceptiva de um fenômeno manifesta a força do vivido, do afetual e do sensível.
Por sua vez, a existência cognitiva de um fenômeno caracteriza-se pela interpretação racional ou intelectiva do mesmo, ou seja, observando-o e o descrevendo "de fora", analisando-o, separando nitidamente sujeito e objeto. A existência cognitiva está mais próxima da razão instrumental ou positivista  que costuma ser a perspectiva de quem estuda ou se manifesta sobre uma prática social como é o caso da mediunidade sem ter, necessariamente, a experiência sensível da mesma. É o caso, por exemplo, dos que simplesmente rotulam o fenômeno como "delírio" e "esquizofrenia". Mas, de outro lado, também se encontra nessa perspectiva o viés solipsista e idealista que, ao negar a mediunidade, dizendo tratar-se de uma mera projeção mental ilusória, paradoxalmente, não nega a existencialidade cognitiva do fenômeno, apenas a trata como ilusória.
Vou exemplificar melhor essa diferença com uma experiência vivida alguns anos atrás, provavelmente, em 2005. Uma mestranda em Antropologia de uma Universidade pública estava fazendo uma pesquisa sobre o Reiki e queria entrevistar reikianos da cidade. Ela soube do meu trabalho na ONG e me procurou. Quando eu soube que ela nunca tinha participado de uma sessão, ofereci a ela essa oportunidade para que ela tivesse mais "informações" para sua pesquisa. E ela respondeu que não queria, pois estava fazendo uma "pesquisa científica" sobre a técnica. Ou seja, o vivido, o sentido, o experimentado não poderia, na ótica dela, fazer parte de uma "pesquisa científica". Essa perspectiva positivista, de distanciamento ou de "neutralidade" é o que estamos chamando de "existência cognitiva" de um determinado fenômeno. Trata-se de uma reflexão mental desvinculada do vivido, do experimentado.
Apesar dos estudos fenomenológicos optarem, na maioria das vezes, pelo primeiro sentido, respeitando e dando visibilidade para as pessoas expressarem sua vivência e compreensão da prática social em questão, o segundo sentido também é importante, pois dele podem emergir vários pré-conceitos que devem ser quebrados por um processo educativo democrático e que valoriza a diversidade, inclusive, a religiosa, uma vez que um estudo fenomenológico deve se atentar à gênese do fenômeno e articulações socioculturais de suas diversas manifestações, mas também não desmerecer sua dimensão teleológica, ou seja, de pensar o futuro ou de contribuir para alguma transformação, permitindo o surgimento de novos rumos, a superação de problemas, entre outras possibilidades, mas também produzir conhecimento para superar situações de marginalização ou estigmatização, como acontece com muitos médiuns, sobretudo os da Umbanda.
E com o crescimento da intolerância com os adeptos das religiões afro-brasileiras, todo trabalho acadêmico que puder ajudar na promoção do respeito e da tolerância entre as religiões é sempre bem-vindo e necessário, manifestando um compromisso ético com a liberdade e com a alteridade, como é a perspectiva da Antropolítica do (re)envolvimento humano, sobretudo no que se refere à defesa da liberdade e da diversidade religiosa.
No caso da mediunidade, há evidências que o fenômeno é muito pouco compreendido, o que faz com que muitos médiuns sejam tratados como esquizofrênicos ou psicóticos, o que não significa que não haja médiuns que sejam esquizofrênicos, mas, muitos casos "diagnosticados", não passam de um desconhecimento dos mecanismos da mediunidade, gerando alguns "transtornos psíquicos" que se resolvem com a prática social dela em algum grupo organizado e experiente.
Tal diagnóstico pré-conceituoso é comum entre os que fazem uma interpretação "cognitiva" da mediunidade, desconsiderando a interpretação "perceptiva" ou como a faticidade mediúnica é vivenciada por quem manifesta esse potencial psíquico.
Para se evitar esta "exclusão", acreditamos que o sentido do fenômeno mediunidade deve ser aprendido em seus aspectos afetual e vivido (existência perceptiva), mas sem ignorar as relações significativas que estabelece com o contexto sociocultural mais amplo, sejam elas antagônicas, concorrenciais ou complementares, compreendendo, inclusive, as interpretações muitas vezes carregadas de pré-conceitos e pseudo-céticas (existência cognitiva) para que seja possível a elaboração de um plano político-educacional (ou antropolítico, como acredita a ONGCSF) que favoreça as mudanças na sociedade, entre elas, o desabrochar de uma sociedade mais tolerante com a mediunidade e, sobretudo, com o médium, acabando com o preconceito, a estigmatização e a exclusão social dos que atuam na umbanda ou em outras práticas sociais espiritualistas afro-brasileiras, vítimas de toda sorte de violência física, psíquica e simbólica.
Enquanto fenômeno, as práticas sociais medianímicas, sejam elas kardecistas, umbandisticas, esotéricas, xamânicas ou outras, são sempre concretas e vividas para o grupo que as experiencia, logo, pensá-las como meras reações determinísticas da história, da ideologia, de crenças ou de outra fonte qualquer não nos possibilita captar com mais profundidade sua existencialidade perceptiva.
Porém, é impossível abarcar o fenômeno em toda a sua plenitude, uma vez que, a mediunidade, assim como qualquer prática social, comporta também uma dimensão de imprevisibilidade, por ser incompleta, e de inesgotabilidade, por ser uma atividade humana, cuja práxis é rica, complexa e polissêmica. Justamente por isso que se torna impossível abarcá-la em todas as suas nuances, sendo necessárias opções metodológicas ou axiomáticas que vão salientar uma ou outra perspectiva adotada pelo pesquisador, como é o caso da Linha de Pesquisa Práticas Sociais e Processos Educativos[2].
Essa questão é similar a apontada por David BOHM (2008) ao se referir ao holomovimento do Universo. Ele é, por definição, indefinível e incomensurável. Porém, cada teoria procura abstrair um certo aspecto considerado relevante em algum contexto o que faz emergir uma certa ordem perceptível e a existência de componentes com grau relativo e limitado de autonomia. Porém, em certos contextos, uma descrição analítica deixa de ser adequada e precisa ser substituida pela holonomia, que não nega a relevância da análise, mas a relativiza, como aspectos relevados do holomovimento.
Em nossa experiência com a mediunidade laica na ONG Círculo de São Francisco descobrimos cinco perspectivas diferentes em relação a prática mediúnica. E, mesmo entre os que acreditam nela, ou seja, que de fato a mediunidade corresponderia a intermediação entre o mundo espiritual e o material, ela exige uma interpretação (hermenêutica), caso contrário não existiriam tantas formas e concepções desta prática social tão polêmica, estigmatizada e questionada, e ainda fortemente associada à patologia mental, mesmo aqui no Brasil onde ela, na segunda metade do século XX, deixou, pelo menos, de ser considerada crime. E isso acontece porque cada uma dessas perspectivas  tende a relevar um aspecto da totalidade do fenômeno mediúnico.
Assim, ao propormos estudar a mediunidade como fenômeno, precisamos relativizar todas as opiniões e, ao mesmo tempo, respeitar todas para se aproximar, de alguma forma do todo. E os cinco pontos de vista que descobrimos são:
1 - a mediunidade é fraude ou charlatanismo - esta é a opinião de quem acredita que o médium está fingindo por alguma razão. Não resta dúvida que há muita fraude e charlatanismo, porém, generalizar todos os casos é uma visão muito reducionista;
2 - a mediunidade é uma patologia mental - esta é talvez a visão dominante no meio acadêmico e escolar. Sempre que um aluno manifesta qualquer traço de mediunidade e não tiver uma pessoa esclarecida na família ou na escola, será tratado como esquizofrênico ou como portador de outra doença mental. Não há evidência que a mediunidade possa causar loucura. Ao contrário, se a pessoa tem esse potencial e ela não é colocada em prática de forma religiosa ou laica, aí sim há o risco da pessoa adoecer mentalmente, uma vez que não saberá como lidar com o fenômeno.
3 - O médium transmite durante o transe informações do seu próprio inconsciente ou do chamado inconsciente coletivo - esta visão é comum entre aqueles que aceitam que o transe é uma manifestação normal ou não-patológica, mas que não está relacionada com manifestações de espíritos. No caso, seria o próprio inconsciente que se manifesta. O fato é possível e é chamado de "animismo" no meio espiritista, distinguindo esse tipo de manifestação daquele que seria "mediúnico". Dentro dessa perspectiva há também uma reencarnacionista que afirmará que o médium manifesta suas antigas personalidades, vividas em existências passadas e não, necessariamente, um Espírito, um desencarnado.
4 - O médium é um ser tomado pelo demônio - esta é a visão mais corrente no meio religioso de fundo evangélico. Não interpretam que um suposto "morto" esteja se comunicando, mas que se trata do "demônio" tentando ludibriar as pessoas, se passando por um familiar ou amigo já falecido do consulente.
5 - o médium é um intermediário entre os mundos visível e invisível, ou espiritual. Esta é a interpretação dos espíritas, dos umbandistas e de alguns grupos esotéricos. E cada grupo se organiza de uma forma distinta para fazer esse intercâmbio mediúnico, o que a Animagogia chama de Psiconomia, ou seja, as formas organizadas de se fazer o intercâmbio mediúnico.
Podemos notar com esse conflito de interpretações que a mediunidade, enquanto uma prática social espiritualista, é um fenômeno complexo e que todas as cinco perspectivas acima são possíveis e devem ser levadas em consideração, porém, é preciso salientar que o médium, mesmo no Brasil, ainda sofre com o preconceito, com a intolerância e com a estigmatização. E, felizmente ou não, não há uma única família que não tenha ou conheça pelo menos um médium ostensivo. E muitas dessas pessoas acabam sendo condenadas a tratamentos desumanos em hospitais psiquiátricos, devido a um diagnóstico nem sempre adequado da medicina oficial ou biomédica.
O estudo da mediunidade enquanto um fenômeno pressupõe, obviamente, a necessidade da descrição fenomenológica, capaz de apreendê-la em seu sentido perceptivo, primário ou estrutural. Porém, como afirma REZENDE (1990), em um estudo fenomenológico não interessa qualquer descrição, mas uma que seja significante, pertinente, relevante, referente, provocante e suficiente. E pretendemos, para aprofundar um pouco mais a investigação, inserir também a interpretação de seu aspecto simbólico, ou seja, na tentativa de captar seu sentido indireto e figurativo.
Para tanto, optamos pelo uso também da mitocrítica durandiana, procurando identificar os mitos e arquétipos por trás dessa prática social espiritualista, e, com base nas pesquisas até o momento realizadas na ONGCSF e já apresentado em eventos na cidade de Natal/RN e João Pessoa/PB, interpretamos que a modalidade kardecista/espiritista tende a manifestar em sua organização o mito de Apolo, deus heroico da razão e que luta contra toda forma de irracionalismo; por sua vez, a umbanda tende a manifestar um mito noturno do tipo dionisíaco, o deus do êxtase e da representação. E no caso da apometria, temos compreendido que a mesma costuma manifestar um mito mais hermesiano, portanto, alquímico e mentalista. Por fim, no caso da Animagogia, que se utiliza de um trabalho de mediunidade laica, conforme praticado na ONGCSF, nossa tendência é de interpretá-la como uma proposta que manifesta o mito de Orfeu. (MARQUES, 2014)
Para dar conta do objetivo apresentado acima, enquanto pesquisador teremos que nos valer de nossa consciência perceptiva e cognitiva, mas também da consciência imaginante/intuitiva e da consciência amorosa/espiritual para elaborar um discurso, ao mesmo tempo, compreensivo, crítico e respeitoso, que apreenda a relação entre a faticidade da experiência mediúnica e sua transcendência e ajude a interpretar o fenômeno mediúnico enquanto uma prática social polissêmica, estrutural, simbólica, não-determinada e ambígua, buscando compreender como ela é vivida (intencionalidade e experiência), pensada e "imaginada" (estruturas de imaginário e arquétipos manifestos), sabendo que a interpretação sempre reflete uma visão ideológica, um ponto de vista que não é neutro, próprio da mentalidade do pesquisador, que, neste caso, tem a pretensão de ajudar a constituir um caminho de resistência contra a massificação e a alienação, uma vez que a cultura popular de onde se origina a mediunidade não é sinônima de cultura de massa. E valorizar o médium como sujeito ativo da história e da cultura, como pretende as pesquisas realizadas na Linha de Pesquisa Práticas Sociais e Processos Educativos[3], pois somente ele é capaz de vivenciar o fenômeno mediúnico de forma integral, ou seja, em suas dimensões corporais, psíquicas, mas também morais e espirituais, nos transmitindo informações sobre a existencialidade perceptiva do fenômeno.
Em suma, podemos identificar três instâncias para uma interpretação fenomenológica das práticas sociais medianímicas:
1 - a descrição fenomenológica da prática social medianímica estudada;
2 - o tratamento interpretativo (que nesta pesquisa utiliza-se também da mitocrítica durandiana); 
3 - a manifestação projetiva (teleológica) visando a libertação, a autonomia, a participação popular, a conscientização, e, no sentido mais profundo, a preocupação ética e de respeito ao Outro.

A abordagem fenomenológica se distingue, por exemplo, da behaviorista (adestramento), da racionalista (homem-máquina), e também da solipsista (consciência pura), mas dialoga com elas também, pois considera a existência de um único mundo, apreendido de forma distinta, justamente por ser construído a partir dos sistemas de valores que representam diferentes sistemas de cultura (FIORI, 1987, 1991 e 2014). Ela não pode ignorar a dinâmica do vivido, do afetual, do contexto sociocultural em que se insere a prática social e nem desprezar a dimensão do sujeito e do individual.
Acreditamos que essa tomada de decisão vem ao encontro da filosofia da libertação de DUSSEL (1982) que não pensa a religião como algo a ser superado, mas que pode ser um fator de libertação e de questionamento das estruturas sociais e cuja perspectiva teológica  parte da necessidade de crer no outro, na epifania, na alteridade e na exterioridade, uma de suas categorias de análise e compreensão do outro mais importantes em sua filosofia.
No capítulo seguinte faremos uma reflexão sobre alguns problemas espirituais e religiosos na educação, a partir da perspectiva dos idosos que entrevistamos e que afirmam terem sofrido física e psiquicamente  pelo fato de serem médiuns e não terem sido acolhidos ou compreendidos no ambiente escolar com o respeito que se fazia necessário.






[1] "Entendemos que as pesquisas junto a pessoas e grupos, principalmente os socialmente 'marginalizados' devem ser realizadas após cuidadosa e paciente inserção dos pesquisadores na comunidade, na instituição, no espaço social, num conviver, realizado em interação e confiança. Essa inserção deve se dar na tentativa de assumir o lugar de um integrante, procurando olhar, identificar e compreender os processos educativos que se encontram naquela prática social. Isto só é possível, quando somos acolhidos, nos dispomos a ser acolhidos e a acolher. Participar com a intenção de compreender, não para julgar. (OLIVEIRA et al, 2009, p. 10-11)

[2] "Esta inserção [na prática social] é insuficiente, se ficar apenas no olhar e não houver participação ou se ficar apenas na procura de resultados, sem se perguntar sobre o processo. Como participar? Apresentando-se às pessoas do grupo em que se insere, apresentando a pesquisa e as questões e dando-se a conhecer. Colocando-se disponível. Pedindo permissão para estar junto, participar. Poderá haver um certo incômodo, desconforto de lugar, mas a disposição em ser acolhido, junto com a disposição daquele grupo, vai dando início e forma à pesquisa. Esse processo exige paciência e tempo, pois não é uma visita, mas uma busca de convívio, seja circunscrito ao trabalho particular que está sendo desenvolvido seja em outros espaços e ocasiões, como por exemplo, atividades/eventos na comunidade, na instituição. Conviver não é apenas um desejo ou uma opção pessoal do pesquisador, que corre paralelamente à pesquisa, mas, sim, o cerne do 'fazer' da pesquisa, explicitado na metodologia, experimentado, avaliado. O convívio não é, tampouco, oportunista; por vezes colocado inicialmente na pesquisa para gerar um clima de confiança e empatia necessário à coleta de dados. (OLIVEIRA et al, 2009, p. 10-11)

[3] "Comprometemo-nos pela realização de estudos e pesquisas com (e não sobre!) pessoas, grupos e comunidades 'marginalizados', 'desqualificados' e 'excluídos' pela sociedade, não compartilhamos da ideia de turvar a realidade ao gosto do pesquisador, mas sim de originar os estudos e pesquisas do encontro de subjetividades, de pessoas, grupos e comunidades - pois só estes podem falar sobre as experiências encarnadas de 'marginalização', 'desqualificação' e 'exclusão', bem como de suas resistências, lutas e reivindicações por uma sociedade mais justa. Envolver-se pelo trabalho, a vontade de melhor conhecer, o saber e o sabor da convivência, nos remete a pensamentos e sentimentos, que de nosso ponto de vista, não são antagônicos à rigorosidade científica, ao contrário, atribuem ao fazer ciência, um especial rigor: amorosidade, acolhimento, indignação, esperança, simplicidade, colaboração. Um desejo de tornar-se mais humano, de humanizar-se no sentido de vida mais justa. Por essas razões, com essas posturas e por esses meios buscamos conhecer e compreender processos educativos próprios a práticas sociais. (OLIVEIRA et al, 2009, p. 14)

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