A constituição da Antropolítica do (re)envolvimento humano
enquanto um movimento ético-político e paradigmático
Em meados da década de
1960, Edgar MORIN (1969) propôs o termo antropolítica,
golpeando sistematicamente o ideal eurocêntrico presente no marxismo e no
freudismo e revalorizando o Outro, sobretudo o "oriente" e o
"terceiro mundo", em suas análises que propõem uma política
pluridimensional do homem (e da mulher, obviamente). Em sua abordagem, a
expressão antropolítica não estaria
contaminada pelo ideal modernista, porém, MORIN não abandona o termo desenvolvimento, apenas o reformula,
purificando-o da "ganga economicista" e dando a ele um sentido humano
e multidimensional em sua "antropolítica do desenvolvimento".
Porém, tal purificação
ou adjetivar o termo como sustentável (desenvolvimento
sustentável) não o redime de um domínio ideológico e mitanalítico
específico, associado diretamente à ruptura com os vínculos. A expressão desenvolvimento,
pelo menos em língua portuguesa, é composta pelo prefixo "des", que
indica negação, e a expressão "envolvimento", que está relacionada diretamente
com a ideia de abarcar, abraçar, compreender, relacionar, unir, compromisso,
empenho, entre outras.
Atualmente, esta
expressão se constitui em um dos principais ideologemas da modernidade heroica
e prometeica e entra em conflito com a proposta original da Antropolítica que é
a da metamorfose societal pautada na solidariedade, em formas cooperativas,
libertárias, de respeito ao Outro, entre outros valores que pretende salientar.
E foi a partir dessa
perspectiva que a ONGCSF passou a identificar como Antropolítica do
(re)envolvimento humano a cosmovisão que fundamenta a Animagogia e, portanto, todos
os projetos de anima-ação cultural, entre elas, a Gerontagogia Holonômica, procurando,
assim, propor uma outra perspectiva mais inclusiva, solidária, ambientalmente
responsável e espiritualista. Essa bacia semântica é mais adequada aos valores
que a ONGCSF busca difundir e propagar no meio sociocultural em que atua
cotidianamente, valorizando uma diferente percepção/representação da realidade
que, do ponto de vista mitanalítico, seria mais hermesiana, em outras palavras,
mas fratriarcal e horizontalizante, rompendo com os mitemas e ideologemas da
modernidade (exclusão, desenvolvimento, verticalização das relações, entre
outros).
Obviamente que as
questões como desigualdade, hierarquia, autoridade etc. permanecem como
centrais, porém, a partir de outras perspectivas "pós-modernas" e/ou
"transmodernas", ou seja, capaz de inserir também a
"libertação" ambiental, ou da Terra, e a espiritual.
A ONGCSF procura abandonar toda a
heroicidade prometeica e o messianismo despersonalizante presentes na
modernidade e, dialogando como autores como Edgar MORIN e Paulo FREIRE que,
apesar de criticarem o autoritarismo presente no marxismo, não abandonaram a
ideia de "revolução".
Paulo FREIRE, por exemplo, apesar do discurso carismático que possuía e
de ser frequentemente venerado por muitos educadores, também foi alvo de
severas críticas, sendo acusado tanto de "elitista" como de
"populista". Marxistas criticam sua obra por não afirmar
necessariamente que a "luta de classes é o motor da história". Por
outro lado, o movimento anti-marxista o critica por fazer "doutrinação
comunista", imputando a FREIRE a culpa pela falência da educação
brasileira, afirmando que o seu método de alfabetização de jovens e adultos
seria o responsável pelo alto índice de analfabetismo funcional no país e
também de plágio, pois teria se apropriado do método Laubach, sem citar as
necessárias fonte. Estas e outras críticas podem ser facilmente encontradas na internet, em sites e blogs que
procuram criticar Paulo FREIRE, sua obra e seu pensamento.
A Antropolítica do (re)envolvimento humano proposta pela ONGCSF tem em
Paulo FREIRE uma das suas referências. E como, nos últimos anos, ele passou a
ser alvo de uma crítica inconsistente, mas contundente, vamos expor resumidade
um pouco de seu pensamento que vem ao encontro da cosmovisão ou paradigma
presente na Antropolítica do (re)envolvimento humano.
Um dos livros mais comentados, e não necessariamente lidos, é Pedagogia
do Oprimido, cuja primeira edição ocorreu em 1970, registrando as
experiências de Paulo FREIRE no Brasil, no Chile e na Europa, além de
apresentar as primeiras sistematizações de sua teoria sobre educação popular.
Em 1992, porém, publicou a primeira edição de Pedagogia da Esperança: um
reencontro com a pedagogia do oprimido, livro no qual expõe uma reflexão
autobiográfica e memorialista, ao mesmo tempo crítica e compreensiva,
revisitando seus conceitos, pontos de vista e experiências políticas e
educativas vivenciadas a partir da década de 1940 e que foram fundamentais para
a escrita do livro Pedagogia do Oprimido. Esta revisão tem por
base as experiências durante o período de redemocratização do país, com fatos
marcantes como o impeachment do presidente Collor e sua
passagem como secretário de educação em São Paulo (1989-1991).
Como um ser neótono neg-entrópico, ou seja, aberto para o
mundo, lúdico-explorador e permanentemente incompleto e inacabado, Paulo FREIRE
faz uma autocrítica, expondo como superou a linguagem machista do livro
anterior, e respondendo a várias das críticas normalmente endereçadas ao seu
trabalho.
As críticas recentes à ele (a partir de 2012 quando se tornou o
"patrono da educação brasileira"), expostas na internet através de sites
e blogs estão associadas diretamente
à guinada "conservadora" verificada no Brasil, que tem o partido dos
trabalhadores (PT) e todas as pessoas relacionadas a ele, como o bode
expiatório do momento, os culpados pela crise política, econômica, social e
moral brasileira. E Paulo FREIRE, apesar de sempre se posicionar contra
qualquer forma de autoritarismo ou doutrinação, de "esquerda" ou de "direita",
acabou sendo envolvido por tais críticas, quase todas superficiais e facilmente
refutadas, como se pode compreender pela leitura do livro Pedagogia da
esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido.
Não de forma saudosista, o livro transita pelo contexto em que o livro Pedagogia
do oprimido foi escrito, apresentando constantes reavaliações de
pontos de vista através de um diálogo entre dois momentos históricos separados
por quase 30 anos. Mais do que um estudo comparativo desses dois momentos, o
livro expõe o amadurecimento pessoal, político e também como educador de Paulo
FREIRE, mas mantendo um ponto central inabalável: o devotamento à tolerância, a
marca profunda de sua vida e pensamento.
A corrupção, presente na ditadura militar, na década de 1990 e, ainda
hoje, continua a manchar e a caracterizar a vida pública no Brasil, nos
governos de "direita" ou de "esquerda". Os extremismos
políticos voltam a ganhar força diante de mais uma crise econômica e
moral, na qual políticos investigados por corrupção cassaram uma presidente que
supostamente cometeu um crime de responsabilidade fiscal que, até recentemente,
era prática administrativa reconhecida pelo Tribunal de Contas da União (TCU),
sendo utilizada por presidentes que a antecederam.
Com a crescente intolerância por quem pensa diferente, seja na religião,
na política e até mesmo no futebol, nossa frágil democracia parece não ser
capaz de se sustentar, deixando pouca margem de atuação para quem se propõe a
refletir sobre sonho e utopia, as "armas" que Paulo FREIRE nos
apresenta, envolto em esperança e crença na possibilidade das mudanças pelas
quais ele sempre defendeu: a amorosidade nas relações e o diálogo fratriarcal
entre todos, respeitando as diferenças. Mas, se está difícil ser otimista, nos
resta a esperança que Paulo FREIRE pensava e a vivenciava como um imperativo
existencial e histórico.
E nesse reencontro existencial com a Pedagogia do Oprimido, Paulo FREIRE
relata duas experiências fundamentais para o nascimento de sua teoria e método:
a primeira foi a fala de um operário, na década de 1960 (que não iremos aqui
reproduzir, mas que se encontra presente no texto supracitado), após fazer uma
palestra para pais de alunos do SESI, onde trabalhava, abordando o tema da
autoridade e da liberdade, enfatizando a questão dos castigos e prêmios na
educação. Essa fala foi de fundamental importância para que ele passasse a
respeitar a vida concreta das pessoas. Paulo FREIRE afirma ter jamais esquecido
tal fala e que foi sua esposa Elza que o fez compreender a necessidade de
entender as pessoas e não apenas ser entendido por elas. Sobre essa questão,
ele nos narra:
Nas idas e vindas da fala, na sintaxe
operária, na prosódia, nos movimentos do corpo, nas mãos do orador, nas
metáforas tão comuns ao discurso popular, ele chamava a atenção do educador ali
em frente, sentado, calado, se afundando em sua cadeira, para a necessidade de
que, ao fazer o seu discurso ao povo, o educador esteja a par da compreensão do
mundo que o povo esteja tendo. Compreensão do mundo que, condicionada pela
realidade concreta que em parte a explica, pode começar a mudar através da
mudança do concreto. Mais ainda, compreensão do mundo que pode começar a mudar
no momento mesmo em que o desvelamento da realidade concreta vai deixando
expostas as razões de ser da própria compreensão tida até então.
A mudança da compreensão, de
importância fundamental, não significa, porém, ainda, a mudança do concreto.
O fato de jamais
haver esquecido a trama em que se deu aquele discurso é significativo. O
discurso daquela noite longínqua se vem pondo diante de mim como se fosse um
texto escrito, um ensaio que eu devesse constantemente revisitar. Na verdade,
ele foi o ponto culminante no aprendizado há muito iniciado – o de que o
educador ou a educadora progressista, ainda quando, às vezes, tenha de falar ao povo, deve ir transformando o ao em com o povo. E isso implica o
respeito ao "saber de experiência feito” de que sempre falo, somente a
partir do qual é possível superá-la. (Op.cit., p. 14)
Essa abertura compreensiva ao outro, respeitando seus pontos de vista,
saberes e experiências foi de tal forma interiorizado que passou a ser a
essência do trabalho andragógico proposto por Paulo Freire, que, ao invés de
doutrinar ou passar conteúdos, visa valorizar a amorosidade e a dialogia no
processo educativo.
E essa fala tão paradigmática desse operário se juntou ao sofrimento
vivenciado entre os 22 e 29 anos de idade. A superação desse sofrimento
existencial se deu quando conseguiu se "distanciar" do problema e
meditar sobre o mesmo, fazendo uma "arqueologia" da dor que sentia,
voltando ao passado, a Jaboatão, onde nasceu, e revivendo sua infância e a
morte do pai. Posteriormente, essa superação do sofrimento foi importante
também para compreender o problema vivido por muitos exilados que conheceu.
E essa relação entre o Eu e o Outro, tão cara ao discurso fenomenológico
e existencial, marca profundamente também o discurso político e pedagógico de
Paulo FREIRE, afastando-o de todo fatalismo, seja o conservador ("Deus
quer que seja assim e não se pode fazer nada") ou o de esquerda ("o
socialismo é inexorável e vai acontecer, não precisamos fazer nada"). A
violência verificada em Pernambuco, tanto em Recife, como no Agreste e também
na suposta "liberdade" vivida pelos caiçaras, levou Paulo FREIRE a
compreender que a educação é subjugada pela sociedade global e, a partir dessa
perspectiva, propõe uma educação que não se vincula nem ao voluntarismo
de setores da esquerda e nem fica refém do objetivismo mecanicista das
pedagogias conservadoras. Enquanto a primeira é uma espécie de "idealismo
brigão" e a segunda uma "negação da subjetividade", a proposta
de Paulo FREIRE procura nem atribuir à educação um poder que ela não tem e nem
negar qualquer poder a ela. Podemos notar que, a todo momento, ele procura
fugir de todo e qualquer reducionismo dicotomizador. A mesma lógica aparece
quando discute as relações autoridade-liberdade. Para Paulo FREIRE, ao negar à
liberdade o direito de afirmar-se, exacerbamos a autoridade, mas, atrofiando
esta, hipertrofia-se aquela. Em suma, os dois extremos podem levar à tirania da
liberdade ou à tirania da autoridade, ambas nocivas à incipiente e
constantemente ameaçada democracia brasileira.
E, ao contrário do que muitos de seus críticos afirmam, a proposta de
educação popular proposta por Paulo FREIRE não foi abraçada por comunistas ou
outros grupos de esquerda mais propensos à doutrinação do que à educação. Em
1982, afirmava sobre a experiência que o levou a propor a pedagogia do
oprimido:
Hoje, passados quase trinta anos, se
percebe facilmente o que só alguns percebiam e já defendiam na época e eram às
vezes considerados sonhadores, utópicos, idealistas, quando não “vendidos aos
gringos”. Que só uma política radical, jamais, porém, sectária, buscando a
unidade na diversidade das forças progressistas, poderia lutar por uma
democracia capaz de fazer frente ao poder e à virulência da direita. Vivia-se,
porém, a intolerância, a negação das diferenças. A tolerância não era o que
deve ser: a virtude revolucionária que consiste na convivência com os
diferentes para que se possa melhor lutar contra os antagônicos. (OP. cit., p. 20)
E, a partir de sua experiência com a educação popular no Chile, através
dos "círculos de cultura", Paulo FREIRE expõe sua divergência com a "pedagogia
doutrinante", que alguns de seus críticos tentam imputar à sua obra,
apontando o que chama de "equívocos" cometidos por intelectuais de
esquerda que ignoram o papel da linguagem e que não escapam da
"incontenção verbal":
uma das tarefas da educação
democrática e popular, da Pedagogia
da esperança – a de possibilitar nas classes populares o
desenvolvimento de sua linguagem, jamais pelo blablablá autoritário e sectário
dos “educadores”, de sua linguagem, que, emergindo da e voltando-se sobre sua
realidade, perfile as conjecturas, os desenhos, as antecipações do mundo novo.
Está aqui uma das questões centrais da educação popular – a da linguagem como
caminho de invenção da cidadania. (Op. cit., p. 20)
Sua proposta em transformar o educando em um "sujeito
cognoscente" e não como a "incidência do discurso do educador" é
o que transforma o ato de ensinar em uma ação política emancipativa ou libertária que transcende o sectarismo e o
fatalismo de esquerda, que tanto incomodava FREIRE, como nessa passagem
elucidativa:
Na verdade, o clima preponderante
entre as esquerdas era o do sectarismo que, ao mesmo tempo em que nega a
história como possibilidade, gera e proclama uma espécie de “fatalismo
libertador”. O socialismo chega necessariamente... por isso é que, se levarmos
às últimas consequências a compreensão da história enquanto "fatalismo
libertador”, prescindiremos da luta, do empenho para a criação do socialismo
democrático, enquanto empreitada histórica. Somem, assim, a ética da luta e a
boniteza da briga. Creio, mais do que creio estou convencido, de que nunca
necessitamos tanto de posições radicais, no sentido em que entendo radicalidade
na Pedagogia do oprimido, quanto
hoje. Para superarmos, de um lado, os sectarismos fundados nas verdades
universais e únicas; do outro, as acomodações "pragmáticas” aos fatos,
como se eles tivessem virado imutáveis, tão ao gosto de posições modernas, os
primeiros, e modernistas, as segundas, temos de ser pós-modernamente radicais e
utópicos. (Op. cit., p. 27)
A partir da página 34 Paulo Freire começa a revisão do livro Pedagogia
do oprimido, apontando, entre outros problemas, a linguagem machista que o
mesmo trazia, reconhecendo esse "erro" e buscando superá-lo. Mas
também questiona a suposta difícil leitura do livro. Sua fala revela que ele
não era adepto do estudo sem compromisso, como alguns de seus críticos afirmam.
Na passagem abaixo, pode se notar sua enfática defesa do ato de estudar como
algo que exige compromisso e dedicação:
Ler um texto é algo mais sério, mais
demandante. Ler um texto não é "passear” licenciosamente,
pachorrentamente, sobre as palavras. É apreender como se dão às relações entre
as palavras na composição do discurso. É tarefa de sujeito crítico, humilde,
determinado.
Ler, enquanto estudo, é um processo
difícil, até penoso, às vezes, mas sempre prazeroso também. Implica que o(a)
leitor(a) se adentre na intimidade do texto para apreender sua mais profunda
significação. Quanto mais fazemos este exercício disciplinadamente, vencendo
todo desejo de fuga da leitura, tanto mais nos preparamos para tornar futuras
leituras menos difíceis.
Ler um texto, sobretudo, exige de
quem o faz, estar convencido de que as ideologias não morreram. Por isso mesmo,
a de que o texto se acha empapado ou, às vezes nele se acha escondida, não é
necessariamente, a de quem vai lê-lo. Daí a necessidade que tem o leitor ou a
leitora de uma postura aberta e crítica, radical e não sectária, sem a qual se fecha
ao texto e se proíbe de com ele aprender algo porque o texto talvez defenda
posições antagônicas às do(a) leitor(a). Às vezes, o que é irônico, as posições
são apenas diferentes.
Em muitos casos nem sequer temos lido
a autora ou o autor. Temos lido sobre ela ou ele e, sem a ela ou a ele ir,
aceitamos as críticas que lhe são feitas. Assumimo-las como nossas. (Op.cit., p. 40)
Para encerrar esta reflexão sobre a atualidade da proposta de Paulo FREIRE
e do equívoco da crítica que tenta impor a ele a culpa por uma educação
doutrinante ou alienante, podemos citar duas frases exemplares que demonstram
que ele, apesar de sonhador e progressista, não aceitava o mundo iconoclástico
e pasteurizado proposto pelos autoritários de "direita" ou de
"esquerda":
Criticar a arrogância, o
autoritarismo de intelectuais de esquerda ou de direita, no fundo, da mesma
forma reacionários, que se julgam proprietários, os primeiros, do saber
revolucionário, os segundos, do saber conservador; criticar o comportamento de
universitários que pretendem conscientizar trabalhadores rurais e urbanos sem
com eles se conscientizar também; criticar um indisfarçável ar de messianismo,
no fundo ingênuo, de intelectuais que, em nome da libertação das classes
trabalhadoras, impõem ou buscam impor a “superioridade” de seu saber acadêmico
às "incultas massas”, isto sempre fiz. E disto falei quase exaustivamente
na Pedagogia do oprimido. E
disto falo agora, com a mesma força, na Pedagogia da esperança. (Op. cit., p. 41)
O que se exige eticamente de
educadoras e educadores progressistas é que, coerentes com seu sonho
democrático, respeitem os educandos e jamais, por isso mesmo, os manipulem. (Op. cit., p. 42)
Acredito ter sido
necessária essa longa exposição do pensamento de Paulo FREIRE para ajudar a
desfazer a crítica infundada a ele, como se sua obra fosse de "doutrinação
marxista". Mas outros autores são fundamentais também para a proposta da
Antropologia do (re)envolvimento, mas preferi me ater às contribuições de Paulo
FREIRE por esse motivo conjuntural. Adiante, continuarei o citando e
relacionando seu pensamento à perspectiva aqui exposta.
A proposta da
antropolítica, um neologismo com quase 50 anos de idade, criado por Edgar
MORIN, pressupõe uma perspectiva libertária e democrática de pensar a política.
E este desejo por mudanças efetivas vinculadas à necessidade de mudanças também
afetivas junto ao desejo de viver em uma sociedade crítica acompanhado pela
vontade de vivenciar uma sociedade também criativa (MARQUES, 2003),
proporciona, do ponto de vista mitanalítico, um processo criativo,
organizacional e produtivo muito mais hermesiano do que prometeico, e que
permita espaço para o Outro, para a vivência da alteridade, para a liberdade. E
os ideais de Paulo FREIRE vem ao encontro desse ideal:
a radicalização, que implica no enraizamento que o
homem faz na opção que fez, é positiva, porque preponderantemente crítica. Porque crítica e amorosa, humilde e
comunicativa. O homem radical na sua opção, não nega ao outro o direito de
optar. Não pretende impor a sua opção. Dialoga sobre ela. Está convencido de
seu acerto, mas respeita no outro o direito de também julgar-se certo. Tenta
convencer e converter, e não esmagar o seu oponente. Tem o dever, contudo, por
uma questão mesma de amor, de reagir à violência dos que lhe pretendem impor
silêncio. (1984,
p. 49)
E outro autor
fundamental para se construir a Antropolítica do (re)envolvimento humano, como
proposta pela ONGCSF, é LÉVINAS (1988) e sua crítica à ontologia. Ao propor uma
Antropolítica do (re)envolvimento humano capaz de sustentar uma prática social
libertária e processos educativos democráticos e sustentáveis, a ONGCSF afirma
que se faz necessário a coexistência de uma base crítica, porém, também compreensiva
e fenomenológica, o que torna fundamental estabelecer um diálogo criativo e
respeitoso com as tradições religiosas, com a ciência não-dogmática e com as
reflexões filosóficas e epistemológicas pós-modernas, na linha sugerida por Jean-François
LYOTARD, Boaventura de Souza SANTOS, Gilbert DURAND, Michel MAFFESOLI, entre
outros, e/ou transmodernas, na perspectiva de Enrique DUSSEL, e não dos autores
que utilizam esse termo (transmodernidade) para se referir à cibernética ou à
cultura do neoliberalismo e à globalização.
Para DUSSEL (2005), a
modernidade é justificativa de uma práxis
irracional de violência e descreve o "mito" da modernidade em sete
principais atributos (2005, p. 30):
1. A civilização moderna
autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar
inconscientemente uma posição eurocêntrica).
2. A superioridade obriga a
desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como exigência moral.
3. O caminho de tal processo
educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato,
um desenvolvimento unilinear e à européia o que determina, novamente de modo
inconsciente, a “falácia desenvolvimentista”).
4. Como o bárbaro se opõe ao
processo civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência,
se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra
justa colonial).
5. Esta dominação produz vítimas
(de muitas e variadas maneiras), violência que é interpretada como um ato
inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador
reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um
sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a
destruição ecológica, etcetera).
6. Para o moderno, o bárbaro tem
uma “culpa”(por opor-se ao processo civilizador) que permite à “Modernidade”
apresentar-se não apenas como inocente mas como “emancipadora” dessa “culpa” de
suas próprias vítimas.
7. Por último, e pelo caráter
“civilizatório” da “Modernidade”, interpretam-se como inevitáveis os
sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da “modernização” dos outros povos
“atrasados” (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser
frágil, etcetera.
A perspectiva da
Antropolítica do (re)envolvimento vem ao encontro dessa crítica, porém, na
perspectiva aqui apresentada, os sete pontos acima não seriam
"mitos", mas ideologemas
que remetem a um mito, no caso, o de Prometeu, estudado exaustivamente na
motocrítica durandiana e de outros autores.
Feita essa ressalva,
podemos compreender que é contra a razão eurocêntrica que DUSSEL vai se
levantar e não contra a razão em si. A razão eurocêntrica, como afirma, é
"violenta, desenvolvimentista, hegemônica" (2005, p.31). E como um
projeto mundial de libertação propõe a “Trans-Modernidade” que se distingue do
projeto pré-moderno (afirmação folclórica do passado), do projeto antimoderno
(de grupos conservadores, de direita, de grupos nazistas ou fascistas ou
populistas) e do projeto pós-moderno (como negação da Modernidade como crítica
de toda razão para cair num irracionalismo niilista).
Porém, a concepção de
pós-moderno que DUSSEL apresenta acima não cobre toda a contraditória
experiência classificada como "pós-moderna". Seu interlocutor ao
discutir a pós-modernidade parece ser Richard RORTY. O que ele critica parece
ser uma vertente "irracionalista" do tipo panfílica e/ou dionisíaca
que se parece muito mais com o
pensamento "contra-moderno" do que, realmente,
"pós-moderno", se compreendermos aqui as reflexões de autores como
Edgar MORIN, Jean-François LYOTARD, Gilbert DURAND, Basarab NICOLESCU, Stéphane
LUPASCO, Boaventura de Souza SANTOS entre tantos outros que também não negam a
razão, mas sim o racionalismo que opõe razão e imaginação, desmerecendo o valor
desta última, tratando-a como algo menor (a louca da casa) ou mesmo sem valor
algum.
Porém, paradoxalmente,
o que aproxima todos esses pensadores é o objetivo comum de se contrapor aos
valores supostamente universais propostos pela modernidade eurocêntrica. Em
suma, eles apresentam muito mais pontos em comum do que divergentes,
complementando-se, inclusive. Utilizando a lógica recursiva de MORIN (2012),
poderíamos dizer que entre o pensamento "pós-moderno" e o "transmoderno"
há uma relação ora antagônica, ora concorrencial e ora complementar, mas
lembrando que outros autores também usam o termo transmoderno, mas com um
sentido bem diferente do utilizado por DUSSEL.
Em suma, temos a
impressão que a diferença acaba sendo muito mais de nomenclatura do que de
objetivo. Por exemplo, tanto DUSSEL (transmoderno e latino) como LYOTARD
(pós-moderno e europeu) fundamentam suas reflexões a partir, principalmente, de
LÉVINAS, que gostava de se apresentar como filósofo e judeu e não como um
"filósofo judeu", como frequentemente foi conhecido.
E como classificar esse
filósofo que introduziu o pensamento de HUSSERL e de HEIDEGGER na França e
depois rompeu com este último, considerando que a ontologia não seria a primeira
filosofia e, sim, a ética? LÉVINAS que fez da alteridade e do respeito ao Outro
o seu campo de reflexão, pode ser classificado como "pós-moderno",
"transmoderno", "não-moderno" ou
"contra-moderno"?
Essa é uma questão de
menor importância ou, até mesmo, impossível de se responder, pois dependerá de
como conceituarmos cada expressão acima. Porém, e sem, necessariamente, realizar
uma exaustiva mitocrítica da vida e obra de Emmanuel LÉVINAS, podemos,
modestamente, afirmar que ele viveu um sonho hermesiano em uma realidade prometéica.
Ele foi o primeiro a traduzir a obra de HUSSERL e de HEIDEGGER para o
francês. Porém, com o advento do nazismo e após ser preso em um campo de
trabalho forçado na Alemanha, elaborou sua crítica à ontologia de HEIDEGGER e
passou a se dedicar à ética, que chamou de "filosofia primeira",
elaborando seu pensamento em defesa do respeito ao Outro e do valor fundamental
da alteridade e da transcendência.
O livro Totalidade e infinito
é considerado como sua principal obra, na qual deixa evidente sua crítica à
busca por um saber absoluto e totalizante na filosofia ocidental (dos gregos
aos alemães) e apresenta sua reflexão sobre o infinito, aprofundando,
inclusive, sua reflexão sobre espiritualidade e postulando que a alma pode
existir antes da encarnação e continuar existindo após a morte.
No prefácio do livro afirma:
Este livro se apresenta como uma
defesa da subjetividade, mas ele não a captará no nível de seu protesto
puramente egoísta contra a totalidade, nem em sua angústia diante da morte, mas
como fundada na ideia do infinito. Avançará distinguindo entre a ideia de
totalidade e a ideia de infinito e afirmando o primado da ideia do infinito.
Vai descrever como o infinito se produz na relação do Mesmo com o Outro e como,
inultrapassável como é, o particular e o pessoal magnetizam de algum modo o
próprio campo em que se verifica a produção do infinito. (1988, p. 13)
Para LÉVINAS, o pensamento do ser, ou seja, a ontologia, conforme HEIDEGGER
a considerou, além de ser um pensamento excludente, seria perigoso por defender
o privilégio da razão e se mostrar pretensamente neutro, quando estaria a serviço
da identidade do "Mesmo" e da negação ou destruição do
"Outro". Para ele, a razão, desvinculada da ética e da justiça, seria
um dos motivos, por exemplo, para a ascensão de Hitler ao poder.
Podemos compreender que o ambiente em que viveu boa parte de sua vida
foi prometeico. O culto à razão, ao progresso, às doutrinas totalitárias
formavam o cerne do pensamento europeu nas primeiras décadas do século XX,
antes da segunda grande guerra. E, paradoxalmente, por questionar o mito prometeico
da razão, ele é condenado como Prometeu. E é em sua experiência em um campo de
trabalho forçado, perdendo toda sua identidade e humanidade, que consegue
enxergar que seus heróis (HUSSERL e HEIDEGGER) também reforçavam o
"Mesmo", estando também inseridos em um pensamento absoluto e
globalizador. Lembremos, por exemplo, as cinco "épocas" definidas por
HEIDEGGER e como elas são extremamente eurocêntricas, ou relacionadas com a
experiência europeia, não sendo, portanto, universais: mítica, pré-socrática,
filosófico-metafísica, estética e científico-técnica.
E, de alguma forma, o próprio LÉVINAS desperta ou rompe com o seu lado
heroico marcado pela tentativa de levar uma outra tonalidade de Luz para
a França racionalista, introduzindo o pensamento fenomenológico nascido na
Alemanha.
E mesmo não sendo possível classificá-lo como um pensador
"pós-moderno" ou "trans-moderno", sua proposta filosófica
apresenta uma ruptura com o ideal moderno e prometeico que fundam o iluminismo
e sua sombra, as sociedades totalitárias de esquerda e de direita. Para LÉVINAS,
a razão foi utilizada para neutralizar o Outro, englobando-o e o reduzindo ao
Mesmo. E a ontologia heideggeriana não visaria a paz com o Outro, mas a
supressão ou posse do Outro. A ontologia, em sua opinião, desemboca na tirania
do Estado, daí afirmar que a ontologia, sem a ética, seria a filosofia do poder
ou a filosofia da injustiça.
E a segunda fase do trabalho de LÉVINAS, após sua experiência no campo
de trabalho forçado, passa a ser a crítica à legitimação do domínio do Outro,
tanto na filosofia grega como na alemã. A ontologia passa a ser considerada a
"filosofia segunda" uma vez que, a "filosofia primeira"
passa a ser a ética, ou a construção da alteridade e de uma relação de justiça
com o Outro que, ao mesmo tempo, é transcendental.
Aqui podemos encontrar uma das principais contribuições ou talvez a
principal contribuição de LÉVINAS para a formulação da Antropolítica do
(re)envolvimento humano: a busca da transcendência que nos leva,
inexoravelmente, ao Outro. Ou seja, ao contrário do pensamento solipsista e de
outros idealistas, para LÉVINAS a transcendência não é negatividade ou negação
do mundo, como se esse fosse uma mera ilusão, mas uma abertura para o mundo e,
sobretudo, ao Outro com o qual devemos aprender a conviver com respeito,
construindo, numa linguagem mais atualizada, uma cultura de paz e cooperação.
E essa relação alquímica ou hermesiana com o Outro que é o objetivo central
da sua ética, abrindo o nosso horizonte para uma perspectiva de não-violência e
de justiça, no qual o ideal moderno iluminista (prometeico) que justifica a
violência contra o diferente é substituída por um ideal transcendente e
metafísico (hermesiano) de abertura e respeito ao Outro motiva toda a práxis que se fundamenta na Antropolítica
do (re)envolvimento humano, conforme teorizado na ONGCSF. Além disso, para
LÉVINAS, a separação do Mesmo só é produzida sob a forma de uma vida interior.
O psiquismo, afirma, não reflete o ser, mas é uma maneira de ser que resiste à
totalidade, uma vez que, a interioridade instaura uma ordem diferente do tempo
histórico em que a totalidade se constitui. A interioridade é justamente a
recusa a transformar-se num puro passivo, que figura nunca contabilidade
alheia. E é o psiquismo e não a matéria que traz um princípio de individualização,
daí a relação direta entre a ética e a metafísica em seu pensamento tipicamente
hermesiano.
Porém, o fato de
LÉVINAS ser europeu, mais precisamente um lituano que vivenciou a revolução
comunista de 1917, estabeleceu-se na França, em 1923, e foi preso pelos
alemães, com a chegada dos nazistas ao poder, fez com que sua obra se tornasse
duramente crítica com a modernidade e toda sua gana prometeica. Porém, na
América latina temos um questão importante, levantada pelo pensador argentino
que é normalmente classificado como "pós-moderno", Néstor Garcia CANCLINE:
"na América Latina, onde as tradições ainda não se foram e a modernidade
não terminou de chegar, não estamos convictos de que modernizar-nos deva ser o
principal objetivo, como apregoam políticos, economistas e a publicidade de
novas tecnologias." (1998, p. 17)
E apesar dessa posição
defensiva contra a modernidade, CANCLINE reconhece a presença de ranços
pré-modernos como a corrupção e o "caudilhismo" populista que
necessitam ser superados na América Latina, de forma geral. E será que daria
para superar essas questões sem ser pela modernidade?
Enfim, essa é uma
questão difícil de ser respondida e não é o objetivo desse estudo. O foco,
nesse momento, é apresentar minimamente a proposta da Antropolítica do
(re)envolvimento humano, na perspectiva proposta pela ONGCSF, e que visa
construir uma relação de respeito e alteridade, base para todo e qualquer programa
educativo crítico e compreensivo voltado para a "libertação",
conforme proposto na "pedagogia" de DUSSEL (1986), que se concretiza
nos níveis da erótica (casa), da pedagógica (escola) e da política (social),
mas incluindo também a libertação da
Terra da opressão humana e a libertação espiritual.
Dentro dessa
perspectiva, podemos afirmar a necessidade da defesa de ideias radicais, mas
não sectárias, valorizando um "otimismo crítico" diante da realidade
sociocultural em que nos encontramos. O sectarismo, segundo FREIRE (1984),
independentemente de ser direitista ou esquerdista apresenta uma matriz
preponderantemente emocional e acrítica. Ele é arrogante, antidialogal e
anticomunicativa. O sectário não respeita outras opções e pretende impor a sua,
o que o caracterizaria essa prática social como fanatismo.
O otimismo crítico
seria, para Paulo FREIRE, o instrumento para se vencer o sectarismo e se
constrói através de uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade
social e política. Ele seria uma maneira de renunciar, simultaneamente, ao
otimismo ingênuo, ao idealismo utópico, ao pessimismo e à desesperança (FREIRE,
1984). Ele implica no retorno à matriz verdadeira da democracia e favorece a
integração com a realidade nacional, que passa a ser valorizada e que exige um
máximo de razão e consciência, diálogo e participação.
E no plano metafísico,
é importante salientar também algumas convergências e divergências entre a
proposta de "libertação" proposta por FIORI e a que está presente na
Antropolítica do (re)envolvimento conforme vem sendo colocada em prática tanto
nas atividades de anima-ação cultural da ONGCSF.
Em ambas as propostas, a transcendência é um fenômeno valorizado que se
alcança através do mergulho na vida, na imanência. E tanto o humanismo católico
progressista de FIORI como a Antropolítica do (re)envolvimento humano vão se
fundamentar em autores como Martin BUBER, Teilhard de CHARDIN e o
carismático e emblemático educador brasileiro, Paulo FREIRE, apresentado acima.
Com base em algumas passagens do livro Educação e Política (textos
escolhidos volume 2), apesar de seu livro História e Metafísica ser mais
profundo a esse respeito, é possível ter acesso as bases de seu pensamento ou
de sua cosmovisão que é identificada pelos organizadores do livro, Otília
Beatriz Fiori Arantes e Paulo Eduardo Arantes, como sendo um "humanismo
católico progressista", daí adotarmos essa nomenclatura para identificar
seu pensamento.
Na apresentação do livro, uma citação dos organizadores ao apresentar a
questão da ideologia, já evidencia que ele não foi marxista:
"por que muitos de nós, na recente 'guerra de legalidade', chegamos
atrasados em relação aos marxistas, aos militantes, que imediatamente tomaram
posição? qual foi a superioridade tática e técnica deles em relação à nós, que
também pretendíamos defender a legalidade, mas numa outra perspectiva, em nome
de outros valores?" (FIORI, 1991, p. 11).
Na página 142, essa frase aparecerá contextualizada na discussão sobre
a ideologia, na qual expõe um outro ponto de vista, diferente do
marxismo, definindo a ideologia como ideia-força, como veremos adiante.
E no texto intitulado aspectos da reforma universitária, que apresenta a
transcrição de uma palestra realizada em 1962, antes de abordar seu conceito de
cultura e de universidade, Fiori vai expor com mais detalhe sua cosmovisão. É
uma passagem curta, mas que deixa patente o seu referencial . Ele afirma que
não é "essencialista" e nem é "existencialista". Em suas
palavras, afirma: "em se tratando de homem, não sou nem essencialista,
pois não ponho, de maneira absoluta, a essência antes da existência, nem
existencialista, ao modo de Sartre, por não admitir que a existência preceda a
essência." (Op. cit., p. 19)
Porém, mesmo admitindo que não é essencialista, pois teria que aceitar
que haveria um princípio que permaneceria sempre igual a si mesmo, como
acontece, em tese, com os adeptos do hinduísmo, o que não é o caso de FIORI,
podemos compreender que sua cosmovisão sofre influência de dois pensadores
espiritualistas evolucionistas: Teilhard de CHARDIN e Henry BERGSON.
A partir desse esclarecimento, fica mais fácil compreender os fundamentos do
humanismo católico progressista de FIORI, que admite a presença de uma essência
que se "conquista" através da existência, através da criação da
história e da cultura. E, no campo político, deixa evidente na transcrição de
sua palestra, a sua opção por um socialismo democrático afirmando que "a
socialização deve ser integração personalizante e não despersonalizante, não a
socialização que sufoca, abafa e faz morrer a personalidade na pessoa humana,
mas, ao contrário, que, pelo adensamento da comunhão humana, propicia as
verdadeiras condições de livre afirmação do espírito." (Op. cit., p. 34)
E a questão do Espírito é fundamental em sua cosmovisão, tanto que a
"libertação" que é um ideologema fundamental no pensamento de FIORI
acontece em 3 dimensões que podem ser alienantes: a libertação econômica, a
social e a religiosa.
Apesar de não fazer referências a LÉVINAS, mas a um outro pensador
judeu, Martin BUBER, podemos encontrar semelhança entre a noção de transcendentalismo
proposta por ele e a de LÉVINAS, conforme exposta em Totalidade e Infinito. Ou
seja, ambos não negam a imanência. FIORI afirma:
O Transcendente, embora
essencialmente distinto do imanente está presente na imanência das coisas e da
História. E o religioso autêntico não é o que se aliena num transcendente
que desconhece o mundo e a História, mas o que, na história do mundo, faz
encarnação concreta dos grandes valores que luzem além das fronteiras de sua
finitude. (Op. cit., p. 34)
Essa concepção de transcendentalismo que, como salientamos, se aproxima
da realizada por LÉVINAS, para quem a transcendência se processa quando nos
abrimos para o mundo, para o Outro, faz com que a proposta educativa de FIORI
seja eminentemente voltada para a "libertação" através da práxis histórica,
porém, não em uma perspectiva marxista, uma vez que propõe uma outra maneira de
se pensar a constituição da consciência humana.
Retomando CHARDIN, ele tomara emprestado o conceito de noosfera, ou
seja, a "superfície espiritual" que envolve a biosfera e, de forma
otimista, aponta que ela possui "amor na origem e na destinação da
história" (Op. Cit., p. 104). Porém, o homem (encarnado) nunca chegará a
realizar-se plenamente afirma, pelo menos no que se refere à temporalidade, ou
seja, à história. Outra coisa é a realização espiritual, que na ótica
cristã de FIORI, o levará a pensar a política como práxis submissa
aos valores morais e espirituais. O contrário disso seria o
"politicismo" (Op. cit., p. 139).
O fazer político proposto por FIORI estaria para além das questões
pensadas por MAQUIAVEL e por KANT, pois, a moral do cristão seria o
"bem" e não, necessariamente, o "dever". Este seria uma
decorrência do primeiro. E, assim, a integração do cristão na sociedade ou seu
compromisso com a história é, também, um "compromisso moral" (Op.
cit., 142).
Como salientamos, a ideologia assume na perspectiva de FIORI um papel
importante e se distingue daquela discutida por MARX. Enquanto para este a
ideologia é uma forma alienada de existência e que deve ser superada, para FIORI
trata-se de uma ideia-força que interfere no processo histórico para
interpretá-lo e transformá-lo. Em outras palavras, a interferência na práxis histórica
é feita através da ideologia (Op. cit., p. 166) e não, necessariamente,
da filosofia. Esta seria a responsável por um mergulho interior no próprio
mistério do ser (Op. cit., p. 166) ou seja, da "energia criadora",
daquilo que "dá consistência aos seres", do
"espírito".
E a partir dessa distinção entre a ideologia e a filosofia, podemos
compreender também sua noção de trabalho: a "expressão de uma
consciência espiritual transformadora do mundo" (Op. cit., p. 170).
Após essa apresentação sintética de seu pensamento, apoiado pela leitura
da transcrição de suas aulas e palestras, vamos apresentar 3 questões
para compreendermos a relação ora complementar e ora concorrencial entre seu
pensamento e a cosmovisão presente na Antropolítica do (re)envolvimento humano,
adotada pela ONGCSF.
A primeira é em relação a essência. De um ponto de vista mais restrito
que pensa o essencialismo como a doutrina que defende que a essência permanece
inalterada ou que não se transforma apesar dos "acidentes" da
existência, o pensamento de FIORI e a Antropolítica do (re)envolvimento humano não
seriam essencialistas. Mas, de um ponto de vista mais amplo, entendendo por
essencialismo a doutrina que defende que há uma essência que antecede a
existência e que pode, inclusive, reencarnar, então a proposta da ONGCSF é
essencialista e se distingue nesse ponto metafísico da proposta de FIORI. Essa
questão, porém, não entra em conflito com a questão da transcendência, da práxis e
da libertação, sobretudo, a religiosa (que a ONGCSF trata como espiritual),
pois como salientamos, tanto em seu pensamento como nos pressupostos da
Antropolítica do (re)envolvimento humano a transcendência não se alcança
fugindo ou se isolando do mundo, mas, ao contrário, na vivência profunda do
mundo, na abertura ao Outro, na alteridade.
A segunda será em relação à noção de noosfera. Como FIORI, a proposta da
ONGCSF também a aceita como uma dimensão espiritual e, como afirma, "amorosa
na origem e na destinação da história". Mas, entre a noosfera e a biosfera
a ONGCSF identifica, como já apresentado, uma outra dimensão intermediária que é
chamada de psicosfera, ou formada pelas energias psíquicas como são as
emoções e os pensamentos. Na psicosfera nascem as criações científicas,
religiosas, filosóficas, artísticas, entre outras, tendo como fundamento uma
base arquetípica "localizada" em uma dimensão "acima",
que foi chamada de noosfera, onde residiria o imaginário, no sentido mais
profundo, e que seria a base das ideologias e das criações mentais humanas que
se materializam, através do trabalho e da práxis, na biosfera.
E essa posição leva a uma diferente concepção de imaginário. Enquanto
para FIORI este é sinônimo de fantasioso (Op. cit., p. 110), a ONGCSF vai
partir, como já apresentado, da perspectiva de Gilbert DURAND, próxima da
proposta por JUNG.
E por fim, a terceira questão que colocamos está na libertação. Além das
três pensadas por Fiori (econômica, social e religiosa), a Antropolítica do
(re)envolvimento humano insere uma quarta: a libertação ambiental, ou seja, a
necessidade de libertar a natureza e a Terra, de forma geral, da opressão
humana, de forma que os animais, as plantas e os elementos naturais deixem de
serem pensados como recursos, e passem a ter seus direitos à vida garantidos.
Apesar das diferenças expostas acima, nada impede um diálogo fratriarcal
e também uma união entre seus adeptos na busca por uma sociedade mais justa,
participativa e que vivencie, de fato, uma cultura de paz.
A Antropolítica do (re)envolvimento começou a ser colocada em prática
através do trabalho do Programa Homospiritualis, criado em 1999, para difundir,
sobretudo, a cultura de paz e a valorização da diversidade religiosa, no
município de São Carlos. O Programa nasceu, portanto, antes da ONGCSF (que
passou a mantê-lo a partir de 2003) e foi inspirado no manifesto da UNESCO que
definiu o período de 2001 a 2010 como sendo a década da Cultura de Paz,
enfatizando o quarto valor que propõe “ouvir para compreender”, no sentido de
defender a liberdade de expressão e a diversidade cultural, privilegiando
sempre o diálogo sem ceder ao fanatismo, à difamação e à rejeição.
Lembremos que Mircea ELIADE (1996), um dos mais importantes
historiadores das religiões, identificou duas formas de ser no mundo, o Homo religiosus e o Homo profanus. Porém, na ótica da Antropolítica do (re)envolvimento
humano, há evidências que no atual cenário "pós-moderno" ou
"trans-moderno" de uma busca
por renovação espiritual que não se coaduna com o perfil do homem religioso
estudado por ELIADE, predominante nas sociedades tradicionais. Essa busca por
espiritualização que marca o cenário "pós" ou "trans" moderno
parece exigir uma nova expressão de Ser no mundo, capaz de distinguir religião
e espiritualidade, constituindo-se, na perspectiva da ONGCSF, no Homo Spiritualis.
Talvez não seja por acaso que Gilbert DURAND (1997) identifica também três
estruturas de imaginário, que convivem simultaneamente, mas com predomínio de
uma sobre a outra, conforme o momento sociocultural (o "místico", o
"heroico" e o "dramático"). E podemos perceber também a
existência de três formas de relação com o meio ambiente e com a comunidade,
que vou chamar de envolvimento, (des)envolvimento e (re)envolvimento. De forma
didática, podemos apontar a existência de homologia entre todas essas relações:
Homo religiosus
|
Homo profanus
|
Homo spiritualis
|
Imaginário místico
|
Imaginário heroico
|
Imaginário dramático
|
envolvimento
|
(des)envolvimento
|
(re)envolvimento
|
O que realmente importa é compreender que o (re)envolvimento humano não pressupõe o
retorno puro e simples ao passado, a um estilo de vida arcaico ou a um modo de
ser, pensar e agir não-moderno. A Antropolítica do (re)envolvimento humano
parte do pressuposto que o mundo moderno se insurgiu, necessariamente, contra o
envolvimento predominante na relação sociedade/natureza, destruindo a religiosidade
própria das sociedades primitivas, quebrando os vínculos e instituindo o que ELIADE
(1996) chamou de Homo profanus.
Porém, esta fase da história humana teve também elementos positivos.
Porém, essa ânsia por desenvolvimento, própria do estilo de vida instituído
pela modernidade, pode ser apontada como uma das causas dos diversos problemas
econômicos, sociais, psicológicos, ambientais e culturais da atualidade e,
antes que haja uma falência total do planeta e da vida como um todo, a Antropolitica
do (re)envolvimento humano busca ser uma forma de rever este sistema
desenvolvimentista, propondo processos educativos que valorizem um estilo de
vida mais natural, capaz de respeitar os ciclos da natureza e revitalizar os
laços comunitários, além de tratar o corpo com mais atenção e respeito, seja
através de alimentos saudáveis e de partos humanizados, além de redescobrir,
sem dogmatismo ou fanatismo, nossa dimensão espiritual ou transcendental.
A Antropolítica do (re)envolvimento humano, dessa forma, deve ser pensada
como um paradigma e também como um movimento ético-político, ecológico,
sociocultural, educativo e espiritualista que tem como meta possibilitar um
(re)envolvimento com a natureza, com a comunidade, com o corpo físico e com a
alma, rompendo, assim, com o estilo de viver sem envolvimento e mecanicista
próprio da modernidade (MARQUES, 2003).
E este (re)envolvimento traz ao cenário da vida humanizada, como já
salientamos, o Homo spiritualis, que não
se confunde com o Homo religiosus de
ELIADE, como já discutido em outros artigos (MARQUES, 2004, 2008 e 2013). No
âmbito das teorias antropológicas do imaginário, podemos inferir que as
sociedades tradicionais ou não-modernas se identificavam, com mais frequência,
com o imaginário místico; por outro lado, as sociedades modernas, com sua visão
economicista, mecanicista e desenvolvimentista, tendem a difundir e a se
organizar pautadas por um imaginário heroico. Nesta relação, temos um
"terceiro excluido" que sempre existiu, mas que começa a se
manifestar neste momento histórico com mais expressão, através de um imaginário
que DURAND classificou como dramático, ou seja, capaz de religar e transitar
entre os dois polos anteriores.
Ainda no plano
paradigmático, e partindo da concepção que existe uma distinção entre o "paradigma clássico" e o "holonômico", com o
primeiro instituindo as "hermenêuticas redutivas" e o segundo as
"hermenêuticas instaurativas", é possível compreender como esta
polarização está presente nas organizações, sobretudo, as educativas, levando-as
a pautar sua práxis através de um ou outro modelo, o que
não significa afirmar que um seja errado e o outro seja certo. Há
circunstâncias que podem exigir um ou outro, mas não necessariamente ambos.
Concordando com PAULA CARVALHO (1990), podemos identificar, do lado do
"paradigma clássico", aquelas que se pautam pela razão técnica / paradigma
clássico / racionalidade técnica / modelo entrópico de organização / imaginário
sistematizado / enfoque macro-estrutural / paradigma da consciência coletiva / paradigma
do indivíduo-Estado / cotidianidade banalizada e, do lado do "paradigma
holonômico", as que se pautam pela razão aberta / paradigma holonômico / razão
cultural / modelo neg-entrópico de organização / imaginário instituinte / enfoque
micro-estrutural / paradigma do ator-agente / paradigma da pessoa-comunidade / cotidianidade
oximorônica.
A
Antropolítica do (re)envolvimento humano, enquanto movimento ético-político, nos
parece associado ao paradigma "holonômico", aceitando que a função
simbólica ou o imaginário é o elemento estruturante de toda e qualquer práxis; que a questão da diversidade
cultural e o acolhimento do pluralismo dos "mapas de realidade" ou
das mentalidades não pode ser menosprezada; e que a "pedagogia da escuta",
que a partir de uma abordagem fenomenológica-comprensiva elabora a questão da
alteridade, é seu método privilegiado de inter(in)venção social.
Dentro
dessa perspectiva "holonômica", toda prática social é também uma prática
simbólica, refletindo, portanto, um ou mais mitos diretores, tanto em sua
dimensão organizacional como educativa.
Ao
se compreender que a função simbólica institui as dinâmicas educativas e a práxis dos grupos sociais, ou seja, que a
ação dos grupos sociais é sempre mediada por diversas práticas simbólicas que
garantem a inteligibilidade e o sentido do "mundo", as ações
educativas e/ou culturais sempre vão se nortear por uma ou outra tipicalidade
(paradigma) que, podem ser, em um caso, como reprodução / linguagem sistemática
/ razão técnica / burocratização da vida social / modelo entrópico de
organização / heterogestão etc. ou, em outro, como transformação / linguagem do
símbolo / razão cultural / pluralismo social e de valores / modelo
neg-entrópico de organização / autogestão etc.
A Antropolítica do (re)envolvimento humano enquanto campo de
atuação ético-político, busca se vincular ao segundo paradigma que se reflete
na proposta sócio-educativa da ONGCSF chamada de Animagogia, processada através
de diferentes projetos de anima-ação cultural, entre elas, a Gerontagogia
Holonômica, iniciada em 2005. Também postulamos que é o imaginário dramático
que está na essência da Antropolítica do (re)envolvimento humano. Em outras
palavras, ao se valorizar as imagens noturnas do tipo dramático (DURAND, 1992),
religando os dois polos arquetípicos anteriores, esta perspectiva imaginária é
que tende a valorizar a ação nos quatro vetores do (re)envolvimento humano: o
(re)envolvimento com a natureza, com a comunidade, com o corpo e com a alma.
A Animagogia, a proposta de educação espiritual que visa integrar o ego
ao Self e despertar os atributos do Espírito, favorecendo o desabrochar do Homo spiritualis, como já salientamos, é realizado através de
diferentes projetos de anima-ação cultural pensados para se atingir o objetivo
animagógico que é vivenciar com habilidade espiritual a vida humanizada. Quando
esse trabalho educativo é realizado com crianças e jovens recebe, na ONGCSF, o
nome de Pedagogia Holonômica. Caso seja realizado com jovens e adultos é
identificado com Andragogia Holonômica e, por fim, se praticado com adultos e
idosos de Gerontagogia Holonômica.
Em resumo, para melhor compreensão, o trabalho da ONGCSF parte da
Antropolítica do (re)envolvimento humano, a cosmovisão ou o paradigma que movimenta o trabalho sócio-educativo por
ela realizada, e que se divide em quatro vetores: o (re)envolvimento com a
comunidade, com a natureza, com o corpo e com a alma. O
quadro abaixo apresenta de forma sintética o que foi exposto acima:
Abordaremos no capítulo seguinte a dimensão metafísica da Animagogia, o
programa sócio-educativo da ONGCSF que tem como meta auxiliar no processo de (re)envolvimento
humano, despertando o Homo spiritualis
de forma que o Ser humanizado possa vivenciar a experiência encarnada com
habilidade espiritual.
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